Follow me

Follow me, the wise man said, but he walked behind.

Leonard Cohen, em Teachers.

Retirado do livro Teatro Vertical, de Manuel Alberto Vieira.

Leva-as o tempo

As paredes
das casas
são palavras
ditas
pelo tempo.

Olivais, 2019

Musicofilia #1


And when you try
To break my spirit
It won't work
Because there's nothing left to break
Anymore

Nenhum futuro

A verdade não tem nenhum futuro, ao passo que a mentira é portadora de grandes esperanças. 

Albert Cossery, em As cores da infâmia. 

Dansar

Desde que comecei a dansar escrevo dansar com s como a Sophia. Danso na minha cozinha descalça. Danso sozinha para os gatos. Gosto de dansar sem música o tempo que a ampulheta do meu Avô Raul mede: 10 minutos. Posso virar a ampulheta ao contrário e dansar mais 10 minutos. Posso dansar assim até ao infinito. Tenho diabetes tipo 2, devo dansar por dia 30 minutos. Também ponho a caixa de música a tocar e danso. É a caixa de música que a minha mãe me trouxe do aeroporto de Frankfurt, no final dos anos 60, quando voltou de um congresso de Botânica em Darmstadt. Esta caixa de música é um abeto com um casamento de passarinhos à volta. É cor-de-rosa e verde. Há um romance de Stendhal que se chama Le rose et le vert. Ainda não li. Mas tenho o livro. Posso ler. Gosto de pensar nestas coisas enquanto danso. Enquanto danso, penso. Penso e giro. De girar e de gerir. Enquanto danso, raciocino, e raciocino melhor. Enquanto danso, rezo pela paz. Enquanto danso, descanso. O meu pâncreas melhora. Só coisas boas. Tenho uma cassette de rock jugoslavo que a minha intérprete em Sarajevo, a Amra, gravou para mim. Estive em Sarajevo em Maio de 1991 num encontro de poetas. Também danso rock. Dansar é leve e intenso como diz a Teresa Amado.

Adília Lopes, em DANSAR, no livro Manhã.

Psiquiatria

Uma médica psiquiatra disse-me nos anos 80: sempre que uma pessoa faz uma coisa bem feita é punida por isso.

Adília Lopes, no texto Psiquiatria, do livro Manhã.

Feliz assim

Tenho 54 anos e continuo a pensar como quando tinha 4. Sou feliz assim.

Adília Lopes, em DUPLEX, no livro Manhã.

Como começa

O ponto de partida do artista não é o nada, mas o caos.

Maria Filomena Molder, em Dia Alegre, Dia pensante, Dias fatais.

Onde se encontram as recordações

Há uma época na vida em que esperamos que o mundo esteja sempre cheio de coisas novas. E depois chega o dia em que nos damos conta de que não vai ser assim. Percebemos que a vida vai ser uma coisa feita de buracos. De ausências. De perdas. De coisas que existiram e desapareceram. E também nos apercebemos de que temos de crescer à volta e entre as lacunas, embora possamos estender a mão na direcção das coisas e sentir esse entorpecimento tenso e luminoso do espaço onde se encontram as recordações.

Helen MacDonald, em A de Açor. 

Queres mesmo levantar-te?

Uma relação amorosa com o medo. Vivo há mais anos com o medo do que com qualquer outra coisa, objecto, animal, pessoa. Conheço o meu medo como ninguém. Sei de que forma ele gosta de se sentar ao meu lado; sei quando está irritado e exige a minha presença imediata. Sei quando me vira as costas e parece ignorar-me. Sei quando me convida para sair, sei quando me exige que saia dali. Sei como de manhã, depois de abrir os olhos, ele me diz sempre as mesmas palavras, naqueles momentos em que é menos piedoso e não se inibe de me maltratar: Queres mesmo levantar-te? Queres mesmo levantar-te? 

Não entendo porque ele me diz isso, porquê esta violência. Mas é a frase que mais me destrói, diariamente, a frase contra a qual vivo, a frase que tenho de superar para poder existir simplesmente, para simplesmente lavar os olhos e a cara. Queres mesmo levantar-te? Queres mesmo levantar-te?

Quero, quero, quero!, vejo-me por vezes obrigado a gritar. Mas penso — depois de acalmar, de voltar às batidas normais dos órgãos, de me instalar de novo na respiração base — que talvez isto me faça bem. Que talvez o meu medo seja mesmo o meu único companheiro, e talvez ele faça isto para me obrigar a gritar — a começar o dia a gritar. 

Talvez ele saiba que, se não me fizesse essa pergunta, eu talvez um dia não me levantasse.

Gonçalo M. Tavares, em Na América, disse Jonathan.

Paciência

"Nessa altura, o meu pai olhou para mim, meio exasperado, meio divertido, e explicou-me uma coisa. Explicou-me o que era a paciência. Disse que era extremamente importante nunca me esquecer do seguinte: quando queríamos muito ver uma coisa, por vezes, tínhamos de ficar imóveis, de permanecer no mesmo sítio, de nos lembrar do quanto desejávamos vê-la e de ser pacientes."

Helen Macdonald, em A de Açor.


Coração tão branco

O dia em que não estivemos juntos já não iríamos estar juntos, ou o que se preparavam para dizer por telefone quando nos ligaram e não atendemos nunca será dito, nem o mesmo nem com o mesmo espírito; e tudo será ligeiramente diferente ou completamente diferente por causa da falta de atrevimento que nos dissuadiu de falar. Todavia, ainda que naquele dia tivéssemos estado juntos, ou estávamos em casa quando nos telefonaram ou nos atrevemos a falar vencendo o receio e esquecendo o risco, mesmo assim, nada disso se voltará a repetir e, por conseguinte, chegará um momento em que o facto de termos estado juntos será como se não tivéssemos estado, e termos atendido o telefone será como se não tivéssemos atendido, e termo-nos atrevido a falar seria como se tivéssemos ficado calados. Até as coisas mais inesquecíveis têm uma duração própria, tal como as que não deixam marca ou nem sequer acontecem e, se estamos prevenidos e as anotamos, gravamos ou filmamos, e nos enchemos de recordações e, inclusive, nos encarregamos de substituir o sucedido pelo mero testemunho, registo e arquivo do que sucedeu, de modo que aquilo que logo desde o início sucede de facto seja a nossa anotação, ou a nossa gravação, ou a nossa filmagem, apenas e só; mesmo que nesse aperfeiçoamento infinito da repetição tenhamos perdido o momento em que as coisas verdadeiramente aconteceram (mesmo que seja o momento da anotação); e enquanto tentamos revivê-lo ou reproduzi-lo e fazê-lo regressar e impedir que pertença ao passado, estará a suceder outro momento distinto, e nesse momento, sem dúvida, não estaremos juntos, nem atenderemos nenhum telefone, nem nos atreveremos a nada, nem poderemos evitar nenhum crime nem nenhuma morte (embora também não os cometeremos nem as causaremos), porque, no nosso esforço doentio por que não termine e por que regresse o que já passou, estaremos a deixá-lo passar ao lado como se não fosse nosso. Assim, o que vemos e ouvimos acaba por assemelhar-se e até mesmo a equiparar-se com o que não vimos e não ouvimos, é só uma questão de tempo ou de que desapareçamos. E, apesar de tudo, não podemos deixar de encaminhar as nossas vidas para o ouvir, e o ver, e o presenciar, e o saber, com a convicção de que essas nossas vidas dependem de um dia estarmos juntos, ou de atendermos um telefonema, ou de nos atrevermos, ou de cometermos um crime, ou de causarmos uma morte e sabermos que assim foi. Às vezes, tenho a sensação de que nada do que acontece acontece de facto, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura, nem permanece nem se recorda incessantemente, e até a mais monótona e rotineira das existências se vai anulando e negando a si mesma na sua aparente repetição até que nada seja nada e ninguém seja ninguém do que foram antes, e a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem, e vêem, e sabem o que não se diz nem tem lugar, nem é cognoscível nem comprovável. O que se dá é idêntico ao que não se dá, o que desejamos ou deixamos passar, idêntico ao que tomamos e agarramos, o que vivenciamos, idêntico ao que não experimentamos e, não obstante, levamos a vida e damos a vida a escolher, rejeitar e seleccionar, a traçar uma linha que separe as coisas que são idênticas e faça da nossa história uma história única que possamos recordar e se possa contar. Dedicamos toda a nossa inteligência, os nossos sentidos e o nosso afinco à tarefa de discernir o que será, ou já está, nivelado, e por isso estamos cheios de arrependimentos e de ocasiões perdidas, de confirmações, e reafirmações e ocasiões aproveitadas, quando, na verdade, nada se afirma e tudo se vai perdendo. Ou talvez nunca tenha havido nada.

Javier Marías, em Coração tão branco.

Morrer de sono

Quando as pessoas morriam, teriam noção disso, do momento em que a morte chegava para elas? Quando estava a morrer, Stephen Crane disse ao seu amigo Robert Barr: «Não é assim tão mau. Sente-se sono… e não importa. Apenas uma pequena e sonolenta ansiedade a respeito do mundo em que se está, mais nada.»

Lucia Berlin, em Anoitecer no paraíso.

Regressar à lentidão

Talvez precisemos voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados.

À conta disso, os ritmos de atividade tornam-se impiedosamente inaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num open space sem paredes nem margens, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfiguradores, num contínuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas em que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados.

Deveríamos, contudo, refletir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Com razão, num magnífico texto intitulado “A lentidão”, Milan Kundera escreve: «Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo.» E explica, em seguida, que o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente proporcional à do esquecimento. Quer dizer: até a impressão de domínio das várias frentes, até esta empolgante sensação de omnipotência que a pressa nos dá é fictícia. A pressa condena-nos ao esquecimento.

Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno.

Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes de Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.

Mesmo se a lentidão perdeu o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais, ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.

José Tolentino Mendonça, em A arte da lentidão.

Feliz depressão

A tia Claris diz que quanto mais deprimido Walter está, mais felizes se sentem as pessoas que estão à sua volta. 

Samanta Schweblin, em Pássaros na boca.

Nem bons nem maus

Parecia-me ter resolvido um problema angustiante: não somos nem bons nem maus, e há ainda muitas outras coisas que também não somos. A bondade é uma luz que ilumina por instantes e com furtiva claridade o fundo obscuro da alma humana. Acende-se uma chama, queima e extingue-se. Contudo, durante o tempo que nos ilumina podemos escolher a direcção que continuaremos a seguir nas trevas. Por isso, é-nos sempre possível dar provas de bondade, e eis o que importa. 

Italo Svevo, em A consciência de Zeno.

Mein Kampf ou o Ursinho Puff

Vinte e sete ossos
trinta e cinco músculos
cerca de duas mil células nervosas
em cada uma das pontas dos cinco dedos
É quanto basta
para escrever Mein Kampf
ou a Casinha do Ursinho Puff.

Wislawa Szymborska, no poema A mão.

Como um fruto

O coração é como um fruto 
cresce 
amadurece 
mas não cai 
Se alguém o quiser 
não morre 

Ana Hatherly, em Fibrilações

Coração no sotão

Cada casa contém um coração.
Talvez no sótão,
talvez debaixo da cama
ou dentro da almofada.
Um coração ligado à casa,
com as raízes presas
e as artérias agarradas.
O sangue a correr
pelas paredes
pelos tubos
pelo entulho.
Um coração que se ouve
baixinho
no silêncio
nos dias de chuva.
O batimento no sótão
como trovoada
como tambores.
A mãe foi embora,
depois eu fui embora.
Tu, de certa maneira,
foste embora.
Todos fomos embora.
E o coração
apodreceu
calou-se
secou.
Imagino que
um dia
voltarei àquele sótão
para me certificar
de que esse coração
ainda bate.

Encher o passeio

Ocasionalmente acontece
Aos que caminham pelas ruas
O desejo de ultrapassar
Os que seguem à frente
Sucede que certas famílias
Se revelam demasiado numerosas
Para caber num passeio tão pequeno
Isso é bonito
Mas é também verdade que eu gostava
De beber esse sonho
De beber essa inveja
De beber o amor inteiro
De ter também uma família assim
Que enchesse o passeio todo.

Respiração boca-a-boca

“…ler é uma espécie de respiração boca-a-boca.” 

Maria Filomena Molder, em Dia alegre, dia pensante, dias fatais.

Pai para sempre

“Porque escrevo? Escrevo porque quero que os meus filhos saibam quem sou. Tenho esperança de que estas palavras, misturadas com o que lhes mostro, sejam suficientes, sejam o máximo possível. Quero que me conheçam porque quero que se conheçam a si próprios. Quando eu já não possuir palavras, espero que regressem a estas e lhes encontrem significados que, agora, são inacessíveis. Escrever é a minha maneira de ser pai deles para sempre.” 

José Luís Peixoto, em O caminho imperfeito.

Morrer, mas acabar primeiro

“Um segundo atrás o meu coração deixou de bater 
e eu pensei: «Seria uma péssima altura para ter um ataque cardíaco e morrer, a meio de um poema», então reconfortou-me a ideia de que nunca soube de ninguém que morresse a meio da escrita de um poema, assim como os pássaros nunca morrem a meio do voo. 
Acho.” 

 Ron Padgett, no poema O POETA ENQUANTO PÁSSARO IMORTAL.

Em jeito de conclusão

“Como é que certos tipos têm belas frases à hora da morte? O «tudo está bem» de Kant, ou o «mais luz» de Goethe, ou o «amanhã o que virá» de Pessoa, ou até mesmo, à maneira de Sócrates, o «levem daqui as mulheres» de Herculano? À hora da morte devia-se era estar calado. E à medida que se lá vai chegando, era o que se devia apetecer. E daí que talvez o não se perder a fala, mesmo em lamúria, é o sinal que resta de que ainda se está vivo. Mas se a coisa é a doer, fica-se quieto e calado, à espera. A grande verdade da vida é a morte. E um morto está sossegado. Como é que certos tipos à hora da morte têm o desplante de ter frases?” 

Vergílio Ferreira, em Pensar.

Inundaria o mundo

“Uma saudade tão grande, tão sem fim. Se o peito de Iona rebentasse e aquela saudade se derramasse, inundaria o mundo, contudo ninguém a vê.” 

Tchékhov, no conto Saudade.

As variações de Goldberg

Those are terrible people who don’t like Glenn Gould… I will have nothing to do with such people, they are dangerous people, escreveu Thomas Bernhard, que é quase como o Rui Veloso dizer não se ama alguém que não ouve a mesma canção.


A condição humana

“Fascinavam-no as pessoas na sua infelicidade, não eram as pessoas em si que o atraíam, era a infelicidade delas, e essa encontrava-a ele sempre onde quer que houvesse pessoas, era ávido por pessoas porque era ávido de infortúnio. O homem é a própria infelicidade, dizia repetidamente, só um imbecil pode afirmar o contrário. O nascer é uma infelicidade, dizia, e, enquanto vivemos, prolongamos essa infelicidade, só a morte lhe põe fim. Isto não significa porém que só nos é permitido ser infelizes, a nossa infelicidade é a condição prévia para podermos ser também felizes, só passando pela infelicidade poderemos acabar por ser felizes (…) porque todas as pessoas são simultaneamente felizes e infelizes, umas vezes a infelicidade é nelas maior do que a felicidade, e vice-versa. Uma coisa porém é certa, há nas pessoas mais infelicidade do que felicidade.”

Thomas Bernhard, em O Náufrago.

A arte de reler

“Eu não lia muito e, quando lia, era sempre o mesmo, os mesmos livros dos mesmos escritores, sempre, sempre os mesmos filósofos como se fossem sempre diferentes. Eu tinha desenvolvido a um nível fantástico a arte de absorver sempre o mesmo como se fosse totalmente novo.” 

Thomas Bernhard, em O náufrago.

Infindável biblioteca

“Agora não há outra música senão a das palavras, e essas, sobretudo as que estão nos livros, são discretas, ainda que a curiosidade trouxesse a escutar à porta alguém do prédio, não ouviria mais do que um murmúrio solitário, este longo fio de som que poderá infinitamente prolongar-se, porque os livros do mundo, todos juntos, são como dizem que é o universo, infinitos.”

José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira.

Às vezes no silêncio da noite

“ — Porque é que, no silêncio da noite, nos assusta falar em voz alta? Nunca fizeste essa experiência?

— Nunca fiz, senhor doutor — respondeu ele no seu tom de falsete. 

Era preciso fazê-la. Mergulhados no silêncio nocturno, sentimo-nos não existir. O que existe é como que o absoluto do mundo, a presença aguda das coisas.” 

Vergílio Ferreira, em Aparição.

Mentiras que salvam raposas

Eticamente, uma mentira é algo abominável. Associamo-la à maldade e ao engano. Não é por acaso que essa é uma das características do demónio: a mentira e a manipulação constante. No entanto, em determinadas circunstâncias, a utilização da mentira pode levar-nos à prática do bem e à luta por um mundo melhor. 

É aquela mentira que não aleija ninguém, mas que até nos pode ficar na consciência por termos rejeitado a verdade. Russell, a certa altura, conta a história de uma raposa: “Sucedeu-me uma vez, ao passear no campo, ver uma raposa extenuada, no último grau do esgotamento, esforçar-se ainda por correr. Alguns minutos mais tarde chegaram os caçadores. Perguntaram-me se tinha visto a raposa e respondi-lhes que sim. Perguntaram-me que caminho ela tinha tomado e menti-lhes. Penso que não teria sido um homem melhor se lhes dissesse a verdade.” 

Não precisamos disso tudo

“O homem que tem tudo aquilo de que precisa ainda assim é infeliz. Esquece-se de que privar-se de algumas das coisas de que precisa é parte indispensável da felicidade.”

Bertrand Russell, em A conquista da felicidade.

Salvo pelos números

Disse Russell: “eu não nasci feliz. Em criança, a minha frase favorita era a seguinte: «Cansado do mundo e carregado com a minha culpa.» Aos cinco anos, refleti que, se vivesse até aos setenta, tinha suportado apenas a décima quarta parte da minha vida inteira e senti então que o interminável aborrecimento que havia diante de mim me seria quase intolerável. Na adolescência, odiava a vida e estava continuamente à beira do suicídio, de que no entanto me salvei devido ao desejo de me aperfeiçoar a matemática. Agora, pelo contrário, amo a vida.” 

Bertrand Russell, em A conquista da felicidade.

Dores de coração

“um brilho de saudade interna iluminou-lhe o coração e o homem cedeu à tentação de abrir a sua camisa para espreitar desajeitadamente o seu próprio peito, mas a transparência ainda não permitia que Odonato observasse com os olhos o que lhe invadia as veias. 

— Nato? é o quê? — Xilisbaba estranhou o gesto. 

— é o quê o quê? — Odonato fechou a camisa. 

— dores no peito? 

— dores no coração. 

— a sério? 

— dores no coração de sentir. deixa lá, minha mulher, os médicos já me garantiram, sofro de saudades acumuladas.” 

Ondjaki, em Os Transparentes.

Gostei de estar consigo

Que privilégio: podermos estar sós. A vida continua a carecer de sentido, mas o nosso esconderijo serve o propósito de nos deixar fazer essa procura e confirmação. Existe quem não tenha onde se esconder: não vêem utilidade no desaparecimento. Certa vez, li que a vida é para se viver e não para ser pensada, porque quando pensamos estamos a afogar-nos devagarinho. Só posso concordar com a última parte.

Devemos esconder-nos todos os dias, encontrar um lugar onde possamos ir buscar a nitidez, a reflexão e as nossas peças desordenadas. Quando lemos um livro não nos encontramos a sós com o escritor? Talvez seja essa a razão de não nos sentimos sozinhos. As palavras do texto são tão verdadeiras quanto o olhar. Quando lemos um livro, olhamo-nos nos olhos: vemos o escritor e ele também nos vê. Reparamos.

Vergílio Ferreira escreveu assim, em Pensar:

— Gostei de estar consigo, mas gosto mais de o ler. 


— Mas foi comigo que esteve quando me leu. Não agora que esteve.

O Deus de dentro e o Deus de fora

No livro Um, ninguém e cem mil, de Luigi Pirandello, o narrador, ao dialogar com a sua cadela a propósito da igreja, escreve assim: “Está lá o mais respeitável dos sentimentos humanos. Tu não podes entender estas coisas, pois para tua sorte és uma cadelinha e não um homem. Os homens, estás a ver?, têm a necessidade de construir uma casa até para os seus sentimentos. Não lhes basta terem-nos dentro de si, no coração; querem vê-los também cá fora, tocá-los; de modo que constroem uma casa para eles.” 

Se Deus estivesse em algum lugar, acredito que não seria lá em cima ou lá fora. Estaria aqui dentro, neste buraco que nos serve de arrumação para tudo aquilo que somos — seria um Deus de dentro.

Não se define realidade

“…nenhuma realidade nos foi dada, nem existe; temos de ser nós a criá-la, se queremos existir; e nunca será uma para todos ou uma para sempre; será, sim, contínua e infinitamente mutável. A faculdade de nos iludirmos que a realidade de hoje é a única verdadeira, se, por um lado, nos sustém, por outro precipita-nos num vazio sem fim, porque a realidade de hoje está destinada a revelar-se-nos ilusão amanhã. E a vida não se conclui. Não se pode concluir. Se amanhã se concluir, acabou-se.”

Luigi Pirandello, em Um, ninguém e cem mil.

Quem tu vês

“A ideia de que os outros viam em mim alguém que não era eu tal como eu me conhecia, alguém que só podiam conhecer olhando-me de fora com olhos que não eram os meus e que me atribuíam um aspecto que estava destinado a ser-me sempre estranho, embora existisse em mim, embora fosse o meu aspecto para eles (um «meu» que, portanto, não existia para mim!) — uma vida na qual, embora sendo a minha para eles, eu não podia penetrar —, essa ideia não me deixou mais ter sossego. Como suportar este estranho em mim, este estranho que era eu mesmo para mim? Como não vê-lo?, como não conhecê-lo?, como estar para sempre condenado a levá-lo comigo, em mim, à vista dos outros e, no entanto, fora da minha vista?” 

Luigi Pirandello, em Um, ninguém e cem mil.

Se o mar secasse

Gabriel acordava todas as manhãs com a mesma interrogação, como se uma voz leve lhe lembrasse ao ouvido: e se o mar secasse? Essa ideia tinha-se colado a ele durante uma aula de literatura, quando folheava um livro sobre teatro. Gabriel esquecera-se do nome do autor, mas a pergunta permaneceu. Pouco antes da chegada do sol, colocava os pés dentro dos chinelos, deitava o café a ferver para dentro da chávena, barrava a pasta de chouriço no miolo do pão, e, de repente, infalivelmente: e se o mar secasse? 

O avô de Gabriel era pescador. Preparava as canas, enchia o balde com uma mistura de pão e sardinha (era a armadilha para o peixe) e amarrava todo o material de pesca à caixa da carrinha. Gabriel não se limitava a formular a pergunta. Procurava dar-lhe resposta e sentido: se o mar secasse, os peixes viveriam dentro da chuva. Se o mar secasse, os Homens venderiam muitos aquários. Se o mar secasse, o almoço de hoje não seria mais que pão e leite. Se o mar secasse, as únicas estrelas que nos apaixonariam seriam as do céu. 

Houve uma manhã em que alguém bateu três vezes à porta. Só podia ser o avô de Gabriel. Significava que estava pronto para mais um dia de pesca e que tinha gosto em levar o neto. Gabriel atrapalhava mais do que ajudava, sabia-o, mas o avô não lhe dizia. Gabriel não tinha a coragem de agarrar no peixe quando este estava fora de água. Antes de ir para o balde, dançava e saltava nas suas mãos, abria e fechava a boca, como se procurasse ainda o isco que o agarrou. Ali, sentado na rocha, Gabriel observava um arco-íris a desenhar-se no horizonte, um barco que furava o vento e as ondas ao mesmo tempo. E se o mar secasse, avô? Estaríamos aqui, da mesma forma? Não, nunca da mesma forma. Não sentiríamos este cheiro a sal e a areia negra, aquele caranguejo não existiria, as tuas mãos não seriam tão duras. 

Se o mar secasse, seríamos pó, vento e lixo. Gabriel lançou a cana ao mar e pescou um polvo muito pequeno. Depois, entusiasmado, puxou-o para terra. Nem se pode chamar polvo a essa miniatura, parece uma aranha, disse-lhe o avô, sorrindo. Gabriel encontrou outra resposta para a pergunta e se o mar secasse?: se o mar secasse, avô, então eu acho que não teríamos memória.

Nada mau, horrível

“O Buddy remexeu nos seus papéis com a eficiência de um executivo. Alcançou-me em seguida uma revista feminina cinzenta: «Vê na página onze.» A revista tinha sido impressa num sítio qualquer no Maine e estava cheia de poemas policopiados e parágrafos descritivos, separados uns dos outros por asteriscos. Na página onze, deparei com um poema intitulado «Amanhecer na Florida.» Saltei de imagem em imagem sobre luz de cor de melancia, palmeiras em verde-tartaruga e conchas estriadas como fragmentos de arquitetura grega. «Nada mau.» Achei-o horrível.” 

 Sylviah Plath, em The Bell Jar.

Para quê olhar

“Gostava de observar os outros em situações críticas. Se havia um acidente no trânsito ou uma discussão na rua ou um bebé enfiado numa campânula de laboratório que eu pudesse ver, parava e olhava intensamente para jamais me esquecer. 

Graças a este hábito aprendi muitas coisas que, por certo, de outro modo me teriam passado despercebidas, e mesmo quando elas me surpreendiam ou me causavam repulsa, não desviava o olhar como se elas fossem banais.”

Sylvia Plath, em The Bell Jar, 1963

Para ser

“Escrever. Porque escrevo? Escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo. Escrevo porque o encantamento e a maravilha são verdade e a sua sedução é mais forte do que eu. Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão. Escrevo para tornar possível a realidade, os lugares, tempos que esperam que a minha escrita os desperte do seu modo confuso de serem. E para evocar e fixar o percurso que realizei, as terras, gentes e tudo o que vivi e que só na escrita eu posso reconhecer, por nela recuperarem a sua essencialidade, a sua verdade emotiva, que é a primeira e a última que nos liga ao mundo. Escrevo para tornar visível o mistério das coisas. Escrevo para ser. Escrevo sem razão.”

Vergílio Ferreira, em Pensar.

Decide-te

“A velocidade mais importante, dizia Frederich Buchmann, não é a da máquina onde estamos sentados mas a das decisões que tomamos. Velocidade que depende exclusivamente do organismo; do sangue que recebes quando nasces e das ideias que recebes quando cresces. É a verdadeira velocidade, dizia Frederich, aquela com que decides. Ao lado disto, a velocidade de um avião é semelhante à de uma carroça.”

Gonçalo M. Tavares, em Aprender a rezar na era da técnica.

Bhagawhandi regressa a casa

No conto Uma passagem para a Índia, escrito por Oliver Sacks, conhecemos a história de Bhagawhandi — uma indiana que sofre de um tumor cerebral maligno. As visões são consequência da doença. Deitada na cama do hospital, vê pessoas, ouve vozes, vislumbra planícies e os arrozais da sua aldeia. A casa entra-lhe através da doença, o mal quase que lhe chega a fazer bem. Às vezes pergunto-me: como é que uma coisa pode ser, dentro de si, tão triste e tão enternecedora?

Certa vez, Oliver perguntou-lhe o que se passava. Bhagawhandi respondeu “estou a morrer, estou a regressar a casa”. E regressou.

Afirmou Wittgenstein

“Aquilo que é mais importante para nós, esconde-se, por vezes, sob uma capa de simplicidade e familiaridade. Somos capazes de nunca reparar em algo só porque o estamos sempre a ver. Ninguém pensa nas verdadeiras fundações das suas perguntas.”

Só sei que nada sei.

“Por vezes, imerso nos seus livros, tomava consciência de tudo o que não sabia, que não lera, e a serenidade à qual aspirava estilhaçava-se, quando percebia o pouco tempo de que dispunha na vida para ler tanta coisa, para aprender o que queria.”

John Williams, em Stoner.

A náusea de Sartre

“I look around the room. What a farce! All these people sitting there looking serious, eating. No, they aren’t eating: they are reviving their strenght in order to complete their respective tasks. Each of them has his little personal obstinacy which prevents him from noticing that he exists; there isn’t one of them who doesn’t think he is indispensable to somebody or something.” 

“I felt myself in a solitude so frightful that I contemplated suicide. What held me back was the idea that no one, absolutely no one, would be moved by my death, that I would be even more alone in death than in life.”

Some of these days 
You will miss me honey 


Espera um minuto

É o título de um conto maravilhoso, escrito por Lucia Berlin.

Nesse texto, ela relata a sua relação com a doença terminal da irmã.

“Suspiros, os ritmos dos nossos batimentos cardíacos, as contracções do parto, orgasmos, todos confluem para a mesma cadência, como relógios de pêndulo postos lado a lado que depressa começam a bater em uníssono. Pirilampos numa árvore que acendem e apagam como um só. O Sol nasce e põe-se. A Lua sobe e desce e, habitualmente, o jornal matutino chega ao alpendre às seis e trinta e cinco. O tempo pára quando alguém morre. É claro que pára para eles, talvez, mas, para os enlutados, o tempo fica descontrolado. A morte vem demasiado cedo. Ele esquece-se das marés, dos dias que se tornam mais compridos e mais curtos, da lua. Rasga o calendário. Nós não estamos à nossa secretária ou no metro ou a preparar o jantar para os miúdos. Estamos a ler a People, numa sala de espera de cirurgia ou a tremer enquanto fumamos numa varanda a noite toda. Olhamos para o infinito, sentados no nosso quarto de infância com o globo terrestre na secretária. Pérsia, o Congo Belga. A pior parte é que, quando voltamos à vida normal, as rotinas, as marcas dos dias, parecem mentiras sem sentido. Tudo é suspeito, um truque para nos arrastar de volta à plácida implacabilidade do tempo.”

Lucia Berlin, no conto “Espera um minuto”, do livro Manual para mulheres de limpeza

Explicar com um poema

“Ela fazia isso, às vezes. Quando queria dizer a alguém o que sentia mas era demasiado difícil, mostrava um poema.”

Lucia Berlin, no conto “Tremoceiros-azuis”, do livro Manual para mulheres de limpeza

A importância das coisas

“O mundo prossegue a sua marcha. Nada tem grande importância, não é? Quer dizer, mesmo importância. Mas depois, por vezes, durante um segundo, é-se abençoado com uma graça, uma convicção de que as coisas importam, que importam muito.”

Lucia Berlin, no conto “Perda”, do livro Manual para mulheres de limpeza.

A morte de Oliver Sacks

Oliver Sacks, um neurologista e escritor, quando soube que ia morrer de cancro, escreveu um texto de despedida. Oliver deixou-nos livros e ideias sobre as suas experiências fortes com doentes: condições difíceis de imaginar, como um homem que confunde a mulher com um chapéu.

Nesse texto, Oliver escreve: “I cannot pretend I am without fear. But my predominant feeling is one of gratitude. I have loved and been loved; I have been given much and I have given something in return; I have read and traveled and thought and written. I have had an intercourse with the world, the special intercourse of writers and readers. Above all, I have been a sentient being, a thinking animal, on this beautiful planet, and that in itself has been an enormous privilege and adventure.”

Há beleza na ideia de nos podermos despedir antes de morrer, e talvez devêssemos viver como se a condição de estar vivo fosse, em si mesma, uma despedida. A aproximação da morte é uma oportunidade de revisitar a vida toda, de olharmos com nitidez, de estarmos gratos pelas coisas que até podem ser tão difíceis de ver agora.


Manusear a felicidade

A tristeza pode justificar-se assim: não nos ensinaram a funcionar com a felicidade. Não saberíamos o que fazer com ela. Ou, como perguntou Samuel Beckett, em À espera de Godot: “and what do we do now, now that we are happy?”

Até ao fim

“Estamos sós com tudo aquilo que amamos.”

Novalis, em “Fragmentos”

Gravidade

“A história de não encontrar o fundo do mar era antiga, vinha desde pequena. No capítulo da força da gravidade, na escola primária, inventara um homem com uma doença engraçada. Com ele a força da gravidade não pegava… Então ele caía para fora da terra, e ficava caindo sempre, porque ela não sabia lhe dar um destino. Caía onde? Depois resolvia: continuava caindo, caindo e se acostumava, chegava a comer caindo, dormir caindo, viver caindo, até morrer. (…) Eu comia caindo, dormia caindo, vivia caindo. Vou procurar um lugar onde pôr os pés…”

Clarice Lispector, no texto A fuga, do livro Todos os Contos.

Obsessão

“…tudo perdoo aos que não sabem se prender, aos que se fazem perguntas. Aos que procuram motivos para viver, como se a vida por si mesma não se justificasse.”

Clarice Lispector, no texto Obsessão, do livro “Todos os contos”

Sobre vencer o tempo

Não é possível. Vencer o tempo seria o mesmo que vencer a morte. Séneca, em Cartas a Lucílio, um livro com mais de dois mil anos, escreve que a morte é “perder um espaço de tempo”. Ou seja, embora possamos compreender que não lhe podemos ganhar, é importante lembrarmo-nos de que ainda nos sobra a vida e a luta.

Portanto, para corrermos contra o tempo, devemos criar espaço. Baudelaire utilizava o verbo embriagar. Essa é uma forma de criar através da poesia, da música, da pintura, do vinho. Criar arte é criar espaço, é uma forma de deixarmos aqui alguma coisa.

Se os outros souberem da nossa existência (pelos vestígios que deixámos enquanto respirámos), então pode-se dizer que o tempo nos venceu, sim, mas nesse dia as nossas pegadas vão continuar a estar cravadas na terra.

Rebentar uma veia

Goethe escreveu que existe uma raça de cavalos que, quando se sentem perseguidos ou encurralados, rebentam uma veia para facilitar a respiração.

Creio que à arte cabe essa mesma função: ao criar, aquilo que estamos a fazer é rebentar uma veia para evitar o sufoco.

A felicidade dos outros é uma criação nossa

Deixo aqui uma passagem brilhante de Goethe, no seu livro “Werther”:

“Visto que somos assim feitos de modo que tudo comparamos connosco e nós a tudo nos comparamos, é evidente que, para nós, a felicidade ou a desgraça residem nos contrastes que vemos ou que julgamos ver. É por isso que não há nada mais perigoso do que a solidão. A nossa imaginação, naturalmente inclinada a exaltar-se pela poesia, cria em si uma série de entes, de que nós ficamos a ser os últimos: tudo o que está fora de nós nos parece magnífico; para o mundo dos nossos sonhos afigura-se-nos muito mais perfeito do que é realmente. E isto é muito simples: como sentimos que nos falta qualquer coisa, quaisquer qualidades, supomo-las existentes nos outros, aos quais, ainda por cima, atribuímos as que nós próprios possuímos e mais um certo estoicismo ideal. Deste modo, esses entes completamente felizes e perfeitos não são mais do que uma criação nossa, que nos desanima e desalenta se estabelecermos a comparação.”

É preciso também não perdoar

Transcrevo aqui um excerto de uma entrevista que a filósofa Maria Filomena Molder deu ao Expresso (aconselho a sua leitura):

O perdão deixa tudo ser como é? 

Deixa, porque dá o benefício àquele que cometeu o gesto detestável. Eu gostaria de ser perdoada em todos os casos? Não. Há um texto singular da Clarice Lispector sobre o perdão. Acha que posso ler uma passagem?

Claro. 

Chama-se “É preciso também não perdoar”, sobre uma entrevista da BBC a uma prisioneira de guerra: “Há uma hora em que se deve esquecer a própria compreensão humana e tomar um partido mesmo errado pela vítima, e um partido mesmo errado contra o inimigo. E tornar-se primário ao ponto de dividir as pessoas em boas e más. A hora da sobrevivência é aquela em que a crueldade de quem é vítima é permitida, a crueldade e a revolta, e não compreender os outros é que é certo.”

Fonte: http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-06-06-Maria-Filomena-Molder-So-comecamos-depois-de-continuar

“”

As melhores citações não se colocam entre aspas, disse Maria Filomena Molder.

A fuga da gazela

Imaginem um leão que persegue uma gazela com o objectivo de a caçar. Ela foge, evidentemente, porque não quer morrer. Mas, se a gazela se virar de repente, enfrentando o leão, ele começa a fugir e os papéis invertem-se. A psicologia animal ensina-nos isto. 

Parece-me uma metáfora muito oportuna sobre os nossos próprios medos

Que a vida é apenas um sonho

“Que a vida é apenas um sonho já antes de mim outros o disseram, e é esta uma ideia que me persegue por toda a parte. Quando vejo em que estreitos limites se encerram as belas faculdades do homem; quando vejo que a sua actividade e a sua inteligência se esgotam para a simples satisfação de necessidades tendentes a prolongar a nossa pobre existência, quando considero que a sua tranquilidade, em presença de certos problemas da vida, é tão somente uma ilusória resignação, como seria a do prisioneiro cujo cárcere tivesse as paredes revestidas de pinturas atraentes e variadas, então, meu caro Guilherme, concentro o espírito em recolhimento e encontro nele um mundo de pensamentos… ou antes de percepções confusas e de vasosos desejos… Não são raciocínios, ainda menos projectos de acção, mas intangíveis sonhos que flutuam ante os olhos e nos quais gostosamente me perco.” 

 Johann Wolfgang Goethe, em “Werther”

Goethe e o poder da literatura

Goethe escreveu Werther, um livro que originou uma onda de suicídios em toda a Europa. Foi um escritor que contribuiu com um exemplo triste (mas fundamental) para que pudéssemos compreender o poder da literatura, para que pudéssemos questioná-la e olhá-la como necessária, fascinante e aterrorizadora, capaz de nos salvar e de nos matar. Os melhores livros são aqueles que nos pedem para morrer e/ou para viver.

Quando um escritor escreve, está a expulsar alguma coisa. A partir daí, a obra deixa de ser dele e passa a ser de quem a leu. Quando a criação nasce, o escritor deixa de poder controlar aquilo que o leitor vai interpretar. Por isso é que existem livros que não são compreendidos, livros que são proibidos, livros que acabam queimados e destruídos. No exemplo triste de Goethe, creio que será injusto responsabilizá-lo pelas mortes consequentes da sua escrita.

Devemos procurar entendê-lo, não para nos matarmos, mas para que a vida possa ser um pouco mais: uma procura constante pela razão da existência, com a consciência de que, afinal, é um privilégio fazermos parte disto.

Ainda nos vemos gregos

Apolo, um dos Deuses do Olimpo, criou o arco, a flecha e a lira. A partir desse momento, nasceu também a cobardia de se poder ferir o outro à distância. Ou seja, já não era necessária a utilização da espada ou da luta corpo a corpo. O contacto físico começava a evaporar-se. 

O homem tem hoje a capacidade de matar a grandes distâncias. Esse acto transformou a barbárie. Lançar uma bomba é um crime cobarde, seguro, confortável e desmedido. Todos os dias vemos as notícias dos bombardeamentos, das crianças mortas, das famílias enterradas, da dor nos olhos de quem ainda os tem, do sofrimento nos rostos, da desumanização. A evolução do mundo segue no sentido de transportarmos a nossa maldade (que muitas vezes se confunde com a nossa verdade), a destruição do espaço segue no sentido de imaginarmos novas formas de criar guerras enquanto estamos sentados num sofá, com um computador à nossa frente e um gin na mão. 

É importante lembrarmo-nos de que Apolo criou também a lira (a poesia, a música). A pequena esperança que nos move pode estar mesmo aí, embora possamos também acreditar que esta música é tocada enquanto o Universo é engolido, como um pianista que dedilha as teclas de um piano enquanto a Polónia se deteriora.

Elena

Era fim de outono. O sol abandonava, lentamente, Lisboa. Elena corria na avenida principal. Foi quando a vi pela primeira vez. Sim, lembro-me bem. Elena estava a correr. Escutei o som do comboio. A estação é onde os comboios vivem, mãe, é onde fazem e desfazem a cama, explicava uma criança. Percebi onde me encontrava: a estação. Elena olhava para o relógio e suspirava. Parecia ter- se atrasado. Sentou-se num banco, junto a mim. Cheirava a rosmaninho. Sim, lembro-me bem daquele cheiro. Nascia-lhe do pescoço. Pensei que, talvez, noutro lugar e ao mesmo tempo, uma flor pudesse estar a nascer da terra. Tinha lido uma teoria fascinante de um escritor russo. Não me recordo do nome do autor, mas sei que dizia: quando um momento nos acelera o coração, imediatamente outro se sucede. E esse, que é novo, acontece tão rapidamente que tem a capacidade de apresentar a mesma medida de tempo. Do cheiro do pescoço de Elena, nascia uma flor. É um pensamento maravilhoso, imaginei.

O comboio chegou finalmente. Elena entrou primeiro e olhou à sua volta. Lembro-me bem: observou o espaço como se procurasse o Universo dentro da carruagem. Um homem de fato fumava. O fumo subia-lhe à frente do nariz e desaparecia num sopro do vento. A noite instalava-se no céu. Lá fora, o frio, os carros, as luzes, os prédios, os sons. A escuridão preenchia o semblante de Elena. O seu rosto era desenhado, intermitentemente, pelas sombras da paisagem. Junto à janela, um casal apontava na minha direcção e na de Elena. Sorriam. Saímos na estação seguinte. Porque teria tido ela tanta pressa? Ficava mais calma, o seu passo era o de quem pensava em andamento: lento, procurando ver-se por dentro, escavando a mente à procura de si mesma. E era tão bonita assim. O casaco castanho realçava-lhe o corpo inseguro e o tronco inclinava-se ligeiramente para a frente. 

Perdoar-me-á o leitor por, naquele instante, não ter tido a capacidade de chamar o seu nome, de lhe segredar alguma coisa ao ouvido. Queria e não podia. Elena entrou em casa. Vivia num apartamento simples, muito pequeno. Estendeu o casaco na cadeira, pousou a mala em cima da cama e sentou-se. Olhou na minha direcção como se me pudesse ver. Tremi. Elena suspirou novamente. Depois, levantou-se e foi à cozinha. Observei o quarto dela. As paredes estavam desgastadas pelo tempo e a cor da tinta era irregular. Havia um quadro com uma pintura de um bosque colocado ali para disfarçar um buraco, mas era perceptível. No chão, junto ao roupeiro, consegui distinguir livros de Dostoievksi, Gogol, Borges e Fernando Pessoa. Havia outros. No entanto, os nomes eram imperceptíveis. Elena voltou. Trazia um copo de vinho e um chocolate. Assim, não estava sozinha. Inclinou-se e pegou num dos livros. Leu, bebeu, leu, bocejou, comeu, bocejou, leu, chorou, bocejou e adormeceu. 

Vê-la dormir foi desejar que a manhã nunca chegasse. Vê-la dormir significou que nasceram milhares de flores novas em todo o planeta. Quando o casaco secou, desapareci. Elena, há a possibilidade de nunca mais te encontrar, por isso vou dizer-te tudo aquilo que eu gostava que estivesses a pensar agora: “É isto a solidão, sinto-a na minha pele. A solidão é adorarmos a poesia da chuva, abrirmos uma janela e não encontrarmos mais do que o calor do sol. A dor é não termos a coragem necessária para abrir um livro. Quando o Universo está seco, os discos não tocam. É essa a razão de precisar de ti aqui: tentar descobrir-me nos espaços vazios da chuva.” 

A nossa existência depende de tudo aquilo que podemos imaginar. Às vezes, é tudo o que temos.

Nós somos miseráveis

Todos queremos ser heróis. Cortamo-nos a fazer a barba, mas inventamos uma história corajosa para justificar aquele golpe feio acima do lábio. Partimos a cabeça a jogar bowling com os colegas irritantes do nosso emprego, mas dizemos que foi uma disputa entre gangs. Enfim, queremos mérito. Queremos, sobretudo, ser mais do que aquilo que somos. Nós somos miseráveis, mas, para bem da nossa saúde, não parecemos. As redes sociais são, nesse sentido, a nossa salvação. 

Vejam bem esta praia onde estive durante 5 minutos, a água estava gelada e congelei, não mergulhei, mas reparem no pé a tocar no mar salgado, podem também ver que ali ao pé da toalha está um livro do Dan Brown, sim, ainda vou nas primeiras páginas. Na verdade, nunca irei ler o livro. Mas façam like. Mentimos constantemente. Somos incoerentes. A este propósito, gostava de deixar aqui uma frase de Dostoievksy, que retirei da obra Os Irmãos Karamazov: “Above all, don’t lie to yourself. The man who lies to himself and listens to his own lie comes to a point that he cannot distinguish the truth within him, or around him, and so loses all respect for himself and for others. And having no respect he ceases to love.” Ou seja, quando mentimos aos outros (e fazemo-lo), estamos também a enganar- nos e a desrespeitar-nos. 

Chegámos a um limite de não ter qualquer consideração pelo que somos e queremos ser. Tudo aquilo que nos for acontecendo saberá sempre a pouco, nada nos será suficiente. Às vezes, imagino que o crime de Rodion Romanovitch Raskólnikov só foi possível por ainda não existir Facebook, Twitter e outros. Se Ródia tivesse acesso a uma rede social, iria dizer uma (ou todas) as frases seguintes: 

Opção 1) “Pessoal, como é que é, está-se bem? Alguém tem aí um machado que me empreste? E um bronzeador?”

Opção 2) “Minha maltinha russa, acabei de matar uma velha. O machado que emprestaram entrou sem dificuldades naquela cabeça. Vejam a foto no meu Instagram (#sem filtros).” 

Opção 3) “É impressão minha ou a polícia anda a perseguir-me? Está um radar na Rua de São Petersburgo, nº3, e estão a mandar parar os carros todos.” 

E Humbert Humbert (também conhecido como Humberto Eco: esta aqui foi o humor no seu expoente máximo), o que seria da criação de Vladimir Nabokov? 

Opção 1) Bonjour mes amis, já não aguento mais, quero fazer amor com a minha Dolly. Alguém disponibiliza comprimidos? 

Opção 2) Reparem bem nas axilas de Lolita, é com cada pêlo, está a crescer a uma velocidade inacreditável, a minha mulher. Vejam a foto no meu Instagram (#sem filtros). 

Opção 3) Alguém conhece uma aplicação tipo Tinder, mas onde só apareçam ninfetas? Merci. Podemos viver infelizes, sim, e vivemos, mas não há nada como olhar para o espelho e confrontarmo-nos com a verdade, com a dor de nos vermos. 

O problema é que já só sabemos distorcer tudo.

A fuga de Travis



“And for the first time, he wished he were far away. Lost in a deep, vast country where nobody knew him. Somewhere without language, or streets. He dreamed about this place without knowing its name. And when he woke up, he was on fire. There were blue flames burning the sheets of his bed. He ran through the flames toward the only two people he loved… but they were gone. His arms were burning, and he threw himself outside and rolled on the wet ground. Then he ran. He never looked back at the fire. He just ran. He ran until the sun came up and he couldn’t run any further. And when the sun went down, he ran again. For five days he ran like this until every sign of man had disappeared.”

Não estás sozinho, Holden Caulfield

Escreveu assim Salinger, em The Catcher in the rye: 

 “Among other things, you’ll find that you’re not the first person who was ever confused and frightened and even sickened by human behavior. You’re by no means alone on that score, you’ll be excited and stimulated to know. Many, many men have been just as troubled morally and spiritually as you are right now. Happily, some of them kept records of their troubles. You’ll learn from them—if you want to. Just as someday, if you have something to offer, someone will learn something from you. It’s a beautiful reciprocal arrangement. And it isn’t education. It’s history. It’s poetry.”

Lolita

“I need you, the reader, to imagine us, for we don’t really exist if you don’t.” 

Com tudo aquilo que se possa dizer (e que já foi dito) da criação de Nabokov, estamos perante um hino à verosimilhança. Lolita é um teste à inteligência do leitor por depender dele, porque todos os livros, sendo diferentes, vivem de uma mesma coisa: esperam pela sua vez de ser lidos, interpretados e, sobretudo, imaginados, para que assim possam existir, talvez para sempre.

Karenine

Karenine é o cão de Tomas e Tereza, personagens de A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera. Representa a bondade como oposição ao fundo do ser humano (num cenário que é controlado pelo regime soviético). A beleza de um cão é fascinante. O Tó, por exemplo, tinha um cão que o mordeu, por isso teve de se desfazer dele. No entanto, quando se fala do cão, o Tó chora, sente a sua falta, como se tivesse encontrado naquele animal a única forma de poder ser compreendido, de ser amado e acompanhado incondicionalmente. 

Entre nós, humanos, parece existir quase sempre uma obrigatoriedade dentro do amor. Pedimo-lo e damo-lo porque o queremos de volta. Há uma passagem de que eu gosto muito no livro de Kundera, no capítulo “O sorriso de Karenine”: “É um amor desinteressado. Tereza não quer nada de Karenine. Nem sequer exige que ele a ame. Nunca se atormentou com as perguntas que atormentam os homens e as mulheres: gostará ele de mim? Já terá amado alguém mais do que me ama a mim? Amar-me-á mais do que eu o amo? Todas essas perguntas que questionam o amor, que o medem, perscrutam, o inspeccionam, arriscarão a matá-lo na casca? Se somos incapazes de amar, talvez seja por desejarmos ser amados, ou seja, por queremos alguma coisa do outro (o seu amor), em vez de chegarmos junto dele sem reivindicações e não querermos senão a sua simples presença.” 

Conversei com o meu pai sobre os cães que já fizeram parte da nossa vida. Todos eles se tornaram especiais de alguma forma. O Gipsy, o Sugar, a Dama, o Sun, o Quima. Às vezes, só queremos ser compreendidos sem as palavras. Não é necessário que alguém nos diga eu percebo-te. É preciso, isso sim, que o amor consiga respirar na leveza, longe dos muros que nos separam, longe da ideia de posse, que é a de se achar que se pode ter alguém. O amor acontece quando simplesmente estamos.


As botas do meu pai

Tenho o hábito de passear pelos lugares que rodeiam a minha casa. O meu irmão acompanha-me. Descobrimos sempre algo novo nas casas abandonadas, na ribeira, nas árvores e nos poços. Há cogumelos à beira da estrada, consegue-se ouvir o som dos falcões e a Natureza respira liberdade, como se Álvaro de Campos nos segredasse ao ouvido “nunca voltarei porque nunca se volta. O lugar a que se volta é sempre outro”. 

Houve até um dia em que vimos um esquilo, mas desapareceu tão rapidamente que não conseguimos ter a certeza de que era mesmo um esquilo. Num dos passeios, o chão estava molhado pela chuva que tinha caído nesse dia. O meu irmão, para não sujar os ténis, calçou as botas do meu pai. É uma memória que me acompanha. Ele colocou-se no lugar do outro, talvez sem se aperceber de que o estava a fazer. Calçar as botas de outra pessoa é estar mais próximo de vestir uma pele diferente daquela que nos preenche o corpo. 

Quando usamos outro par de sapatos abrimos uma nova porta na carne do Universo. Pode até ser uma metáfora, mas acredito que essa seja a forma mais bonita de percorrer um caminho. Nada me orgulha mais do que ver o meu irmão a andar, deixando atrás de si as pegadas do meu pai.

O peso da responsabilidade

Em 1986, Borges, quando questionado sobre a existência de Deus, escreveu assim: “It is better that He should not exist; if He did he would be responsible for everything.”

 Deus, a existir, poderá ter um certo medo de aparecer. É compreensível, pois terá que responder por toda a beleza que criou, mas também por toda a tragédia a que deu origem.

A queda de um pirilampo

Cresci num lugar rodeado pela floresta e pelo campo. À noite, os pirilampos criavam uma luz intermitente na escuridão e a minha mãe dizia que, se conseguíssemos tapar um deles com um copo, o pirilampo transformava-se numa moeda. Soa a uma adaptação da história da fada dos dentes, mas esta é (definitivamente) mais bonita.

Eu sabia que os pirilampos eram estrelas que não tinham encontrado o seu espaço no céu. Acreditava que sim. Escrevê-lo agora é uma forma de acreditar novamente: os pirilampos são estrelas que não encontram o seu espaço no céu.

O inferno são os outros

Disse Sartre, fazendo uma clara referência às finanças.

A consciência da vida

O Zé contou-me que lhe colocaram uma válvula no coração e que, durante a noite, quando o silêncio se instala no quarto, consegue escutá-la a funcionar. É uma pena, Zé, que a ciência ainda não tenha encontrado forma de substituir o tic-tac por melodias mais agradáveis. Gosto de imaginar que um dia terás cotovias a cantar no teu coração. 

 Zé, há uma coisa que me fascina nesse barulho que te sai do peito: podes deitar-te e adormecer, todos os dias, com a consciência plena de que ainda estás vivo.

A arte, segundo Al Berto

Escreveu assim, em Lunário: 

“E não pintamos, nem escrevemos ou fotografamos para nos salvar, ou então é só por isso que o fazemos. De qualquer maneira, sabemos que se não o fizermos estamos mais rapidamente perdidos, e é tudo… Mas, por outro lado, deparar com a precariedade da vida, e com a inquietante perenidade dos vestígios que nos sobreviverão, torna-se muito doloroso (…) Sabes, Nému… acho que seria sedutor se o fim do corpo se processasse de outro modo, não pelo apodrecimento, mas sim pelo regresso ao que ficou registado nos textos e nas fotografias e nas pinturas; conforme recuássemos, a escrita e as imagens desapareceriam… Atravessaríamos assim a nossa própria memória e apagar-nos-íamos no início dela.”, pág.144.

Encontramo-nos noutro sítio

Não há uma coisa que seja, em si mesma, totalmente certa ou errada. Existem perspectivas, ângulos e ideias. Como disse Rumi: “Beyond all ideas of right and wrong there is a field. I will be meeting you there.”

Telenovelas brasileiras

Há uma memória que guardo num lugar muito especial. Quando era criança, assistia às telenovelas brasileiras na companhia da minha mãe. Deitava-me ao lado dela, na cama dos meus pais, e deliciava-me a ver O Beijo do vampiro, Laços de Família, As filhas da mãe, Porto dos Milagres, Terra Nostra e outras. Era o esconderijo mais seguro do planeta.

Desde cedo aprendi, porque a minha mãe me ensinou, que existem apenas duas coisas capazes de nos salvar: o amor e a ficção.

Ideia para epitáfio

“Volto já. Volte você também.”

Já tudo foi escrito

É uma frase que se lê e ouve muito: a teoria de que já existe tudo e a ideia de que, fatalmente, estamos impedidos de criar algo novo.

A Biblioteca de Babel é um texto muito conhecido de Borges, em que ele se refere ao Universo como sendo uma Biblioteca, e diz, a certa altura, algo que me interessa muito: “não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos.“

Uma questão de minutos

No livro Ficções, da autoria de Borges, há uma referência (em rodapé) à teoria que Russell escreveu no seu livro The Analysis of Mind, sugerindo que o mundo foi criado há poucos minutos e que, consequentemente, o passado se trata de uma ilusão. Resta-me apenas dizer, porque só estou aqui há cerca de dois ou três minutos: sejam bem-vindos.

Risco de perder a poesia

Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser, escreve que o nosso cérebro contém uma área especial que nos permite lembrar de tudo aquilo que nos faz bem - coisas que nos tocam. É assim que, por exemplo, surge o amor. Essa área tem o nome de Poetic memory. 

No conhecido filme Eternal Sunshine of the Spotless Mind, que conta com a participação de Jim Carrey, parece haver uma tentativa de apagar alguma dessa informação. Tenta-se, deliberadamente e fantasiosamente, eliminar o amor. 

Nunca me deitei num bloco operatório, mas é provável que um dia aconteça. Vou lembrar-me de pedir para terem muito cuidado, todas as cirurgias comportam algum risco e eu não quero que, por engano, mexam na minha poesia.