Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.

Adam Zagajewski, em Sombras de Sombras.



Uma caixinha pequena
escondida no fundo de outra caixa.
Uma caixa singular
em que cabe
a diária realidade,
a noite,
o pranto.
Uma caixinha dentro de outra,
o coração.

Gisela Galimi.
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar.

Adília Lopes, no poema No more tears, do livro Dobra.

A única questão: para não caíres tens de te deslocar até àquilo que não te deixa cair.

Gonçalo M. Tavares, em Atlas do Corpo e da Imaginação

Não acredito em Deus, mas sinto a Sua falta.

Julian Barnes, em Nada a temer

Há uma outra poesia, haverá sempre,
como há uma outra música.

Joan Margarit, em Misteriosamente feliz.
O passado pulsa dentro de mim como um segundo coração. 

John Banville, em O Mar. 

A tarde lilás e limpa.
A paisagem a derrotar o tempo
e a luz de outono a ferver-me a pele.
À noite, ouvimos as ondas junto ao mar.
Está escuro, não o conseguimos ver.
Tens a certeza de que está ali?
E as coisas que ouvimos,
mas que não vemos,
existem?
Sim, é possível. Não sei.
Mas amanhã o dia confirmará. 

Praia Azul, Santa Cruz, 2021.


Hiroshima Mon Amour (1959)







A metamorfose dos pássaros, de Catarina Vasconcelos (2020).



 

 




Metáfora ou a Tristeza virada do avesso, de Catarina Vasconcelos (2014).