Há um momento após desviares o olhar
em que te esqueces de onde estás
pois tens vivido, parece,
noutro lado, no silêncio do céu nocturno.

Deixaste de estar aqui no mundo.
Estás num lugar diferente,
um lugar onde a vida humana não tem sentido.

Não és uma criatura num corpo.
Existes como as estrelas existem,
participando na sua quietude, na sua imensidão.

Até que volta a estar no mundo.
De noite, numa colina fria,
a desmontar o telescópio.

Só depois percebes
que não é falsa a imagem
mas a relação.

Vês de novo como cada coisa
fica tão longe de todas as outras.

Louise Glück, em Averno.

Primeiro tiveste que escolher a madeira, cortar, aplainar, pregar as tábuas. Primeiro o caixão.
Mais tarde, um pouco mais tarde, incorporas-te no cortejo. 
Chegado ao cemitério, já ofegante, vais ter que abrir a cova.
E és tu ainda, quem mais havia de ser, quem desce o caixão, nele já deitado. Irrepreensivelmente imóvel.
(Porquê? Porque é assim mesmo: há paradoxos de que nem um morto se livra).
Sozinho fazes toda a festa, se assim pode dizer-se. Sozinho, o cerimonial e a despesa. A última burocracia, a da morte.
Família, acompanhantes, mirones, voyeurs da desgraça - não existem.
Tens que ser tu a lançar à cova, sobre o caixão, um punhado de terra. Ashes to ashes, dust to dust. Seja bem cavo o som da terra a bater na madeira.
E não esqueças também as flores prévias. 
Tu, porque os outros existem - sim, existem - mas não estão lá.
Tens que ser tu a verter as lágrimas, as únicas lágrimas, afinal.
Tu, não obstante o «merecido repouso» e o «eterno descanso» e toda a gíria restante e consabida. 
Por fim a terra em cima, o mais possível, a terra bem acamada. 
Tu quem morre. E como se não bastasse, tu ainda gato-pingado, padre e coveiro, parente e amigo.
Tu, único acompanhante, silencioso e solícito. Consternado como é devido.
E finda a cerimónia, tu a teres que sair do cemitério: pelos próprios meios, que remédio. Quase furtivamente.
E em passos vacilantes, inglório, sabe-se lá com que forças, regressar por fim a casa - porque não há mais sítio - e recomeçar tudo.

Rui Caeiro, em O sangue a ranger nas curvas apertadas do coração.

Adiar o acto é passar a viver a vida de um outro. Adiar é, por isso, uma outra forma de morte. 

Rui Caeiro, em O sangue a ranger nas curvas apertadas do coração.

Os Portugueses vivem em permanente representação, tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou colectivo. A reserva e a modéstia que parecem constituir a nossa segunda natureza escondem na maioria de nós uma vontade de exibição que toca as raias da paranóia, exibição trágica, não aquela desinibida, que é característica de sociedades em que o abismo entre o que se é e o que se deve parecer não atinge o grau patológico que existe entre nós.

Eduardo Lourenço, em Labirinto da Saudade

a memória, aprendi por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido.

José Cardoso Pires, em De profundis, Valsa Lenta
Muitas pessoas fartam-se de fazer e ver sempre a mesma coisa e são assim levadas a sentir, não ódio, mas náusea pela vida. Aliás, até a própria filosofia nos pode conduzir a essa mesma náusea quando nos diz: “até quando aguentaremos sempre o mesmo? Nunca faremos outra coisa senão acordar e adormecer, comer e sentir fome, ter frio e calor? Coisa alguma tem um termo, está tudo urdido em círculo, tudo se sucede alternadamente sem parar: a noite põe termo ao dia, e o dia à noite, o verão vai findar no outono, ao outono segue-se o inverno, que por seu turno é destronado pela primavera; tudo passa para regressar novamente. Não realizamos nada de novo, não vemos nada de novo: e aqui reside por vezes a causa da náusea.”

Séneca, em Cartas a Lucílio. 

à medida que nós crescemos a nossa vida vai decrescendo. Começamos por perder a infância, depois a adolescência, depois a juventude. Todo o tempo que decorreu até ontem é tempo irrecuperável; o próprio dia em que estamos hoje, compartilhamo-lo com a morte.

Séneca, em Cartas a Lucílio.

Os filões dos metais ligeiros encontram-se à superfície, mas os metais mais preciosos são aqueles cujos veios se encontram mais fundo e que, por isso mesmo, compensam muito mais quem os explora (…)

age da única maneira possível para obteres a felicidade: repele e despreza aqueles bens que só brilham por fora, que dependem das promessas de fulano ou das benesses de cicrano. Faz do verdadeiro bem o teu alvo, busca a alegria dentro de ti (…)

O corpo alicia-nos para prazeres ilusórios, prazeres que nos repugnam mal terminam.

Séneca, em Cartas a Lucílio