Seja qual for a forma em que é encontrada, a beleza é sempre uma excepção, sempre apesar de. É por isto que ela nos comove. 

John Berger, em Porquê olhar os animais.

Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.

Carlos de Oliveira, em Quinze Poetas Portugueses do século XX.

 


Our eyes are the windows to our souls,
and they will show one another all there is to know.

No fim dos seus dias, Tolstói viu na literatura uma maldição e transformou-a no mais obsessivo do seu ódio. E então renunciou à escrita, porque disse que esta era a maior responsável pela sua derrota moral. E uma noite escreveu no seu diário a última frase da sua vida, uma frase que não conseguiu terminar: «Fais ce que dois, advienne que pourra» (Faz o que deves, aconteça o que acontecer). Trata-se de um provérbio francês do qual Tolstói gostava muito. A frase ficou assim:

Fais ce que dois, adv...

Enrique Vila-Matas, em Bartleby&Companhia.

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça. 
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça. 

Eugénio de Andrade, em Primeiros poemas: as mãos e os frutos ; os amantes sem dinheiro.

Guardamos todos um livro, talvez um grande livro, que no tumulto da nossa vida interior raramente emerge ou fá-lo tão rapidamente que não temos tempo de o apanhar. 

Enrique Vila-Matas, em Bartleby&Companhia.

 



And we’re breathing more
Than we ever have before.

 


Little poppies, little hell flames,
Do you do no harm?

You flicker. I cannot touch you.
I put my hands among the flames. Nothing burns

And it exhausts me to watch you
Flickering like that, wrinkly and clear red, like the skin of a mouth.

A mouth just bloodied.
Little bloody skirts!

There are fumes I cannot touch.
Where are your opiates, your nauseous capsules?

If I could bleed, or sleep! -
If my mouth could marry a hurt like that!

Or your liquors seep to me, in this glass capsule,
Dulling and stilling.

But colorless. Colorless.

Sylvia Plath, em Poppies in July.

 


'Cause even in the worst of times
You saw the best of me.

Nenhuma imagem fixa é evidente porque a vida não está nunca nesse ponto técnico que a fotografia capta. 
Se uma fotografia tivesse costas era aí que a vida estava.
A dinamite faz explodir coisas; já uma fotografia faz implodir uma narrativa veloz tornando-a uma simples posição estática. 
Uma fotografia concentra e suspende, uma explosão espalha.
A fotografia de uma explosão é algo impossível.
Podemos tentar, mas quando se pára o movimento, o movimento desaparece. 
E quando se pára a vida, a vida desaparece. 

Gonçalo M. Tavares, no Expresso. 

 



Mãe, eu quero ir-me embora — a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram —
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora — os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim — tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora — nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique —
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito
como uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora — esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua — a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

Maria do Rosário Pedreira.

 


I was only trying to spell a loss.

Façamos uma limpeza geral
e deitemos fora todas as coisas
que não nos servem para nada, essas
coisas que nós já não usamos, essas
coisas que ficam a apanhar pó,
as que evitamos encontrar porque 
nos trazem as lembranças mais amargas,
as que nos magoam, ocupam espaço
ou nunca quisemos ter junto a nós.
Façamos uma limpeza geral
ou, melhor ainda, uma mudança
que nos permita abandonar as coisas
sem sequer lhes tocar, sem nos sujarmos, 
deixando-as onde sempre estiveram;
e vamos nós embora, vida minha, 
para começar de novo a acumular. 
Ou então deitemos fogo a tudo
e fiquemos em paz, com essa imagem
das chamas do mundo perante os olhos
e com o coração desabitado.

Amalia Bautista, em Conta-mo outra vez. 

 


Perto de casa,
parámos para admirar
aquela árvore. 

O que ela fez foi escalar
a sombra
contornando-a com o tronco
(como numa dança)
até encontrar 
a luz.

Então olho-a e sei:
eu sou aquela árvore.
Tu olhas e sabes
que és aquela árvore. 
Os que vierem depois
amanhã ou
talvez noutro século
serão aquela árvore
também.

Enquanto o Sol 
se segurar
lá em cima,
vamos dar sempre
flor.

D.M

Devemos ter cuidado com a forte ligação exclusiva a outra pessoa; não é, ao contrário do que por vezes se julga, prova da pureza do amor. Esse amor exclusivo, encapsulado, que se alimenta de si próprio, sem dar nada a terceiros nem qualquer preocupação com eles, está condenado a ruir. O amor não é apenas o nascer de uma paixão entre duas pessoas; existem infinitas diferenças entre apaixonarmo-nos e mantermo-nos nesse estado. Aliás, o amor é uma forma de estar, é algo que se «dá» e não um estado em que se «mergulha»; é um modo de nos relacionarmos com o mundo e não um gesto limitado a uma só pessoa. 

Irvin D. Yalom, em A Psicologia do Amor.

Conta-mo outra vez: é tão bonito
que não me canso nunca de escutá-lo.
Repete-me, uma vez mais, que o par
do conto foi feliz até à morte,
que ela não lhe foi infiel, que ele nem sequer
pensou em enganá-la. E não te esqueças
de que, apesar do tempo e dos problemas,
continuavam cada noite a beijar-se.
Conta-mo mil vezes, se faz favor:
é a história mais bela que conheço.

Amalia Bautista, em Conta-mo outra vez.

 






Regressar a casa.
Vê-la em flor.
Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho. Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo. Por que as nuvens não caem, já que tudo cai? É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta. Inteligente, não é? Sim, mas caem um dia em chuva.

Clarice Lispector, em A hora da estrela.

 


Scenes from a marriage (1974), dir. Ingmar Bergman.

Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre ― a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono.

Guarda-o
serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.

E protege-o de todos os invernos ― dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde esconde
os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,
na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez o que queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.
E nada lhe peças de manhã ― as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol.

E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.

Maria do Rosário Pedreira, em Poesia Reunida.

O meu vizinho sofre de
Alzheimer.
Às vezes vejo-o,
mas sinto que ele
não me vê.
Nos dias difíceis,
em que pareço querer
esquecer t
udo,
penso:
a vida é dura,
a vida dói.
Mas será sempre melhor
lembrar do que
esquecer.

D.M



Eu não quero mudar o mundo.
Não tenho tempo para isso.
Quem quer mudar o lugar do mundo actua como quem muda o lugar de um móvel:
empurra primeiro para um lado,
foi força demais,
empurra então para o outro lado,
agora com força de menos,
depois mais um pequeno toque para lá
e um ainda mais pequeno toque para lá,
e agora sim:
o móvel está no lugar.
Depois abrimos o móvel e vemos que os copos que estavam
lá dentro se encontram todos partidos. Estão a ver?

Os copos todos partidos. Que aborrecimento.
Não nos lembrámos da fragilidade do vidro.

Gonçalo M. Tavares, em O homem ou é tonto ou é mulher.
Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece.

Maria Gabriela Llansol, em O começo de um livro é precioso.

 


I’m gonna take my trip. I’m gonna go back to Alaska again, because of some good memories. And, um, just do what I have to do. I have this book called Final Exit by Dr. Kevorkian. Some people call him Dr. Death. And it’s like, various ways that you can end your life if you need to. And, um, it’s kind of like a recipe. I have it, if I have to fall back on it for some ideas, but I’m not gonna spend any more time indoors in a hospital. No, thanks. … I’m gonna be 75 this year and I think I’ve lived a pretty good life. I’ve seen some really neat things, kayaking, all those places. And, you know, moose in the wild. A moose family on a river in Idaho. Um… And big, white pelicans landin’ just six feet over my kayak on a lake in Colorado. Or, uh… um, come around a bend, was a cliff, and find hundreds and hundreds of swallow nests on the wall of the cliff. And the swallows flyin’ all around. And reflecting in the water so it looks like I’m flying with the swallows and they’re under me, and over me, and all around me. And the little babies are hatchin’ out and egg shells are fallin’ out of the nests, landin’ on the water and floatin’ on the water. These little white shells. It’s like, well, it’s just so awesome. I felt like I’d done enough. My life was complete. If I died right then, that moment, it’d be perfectly fine.

Nomadland, de Chloé Zhao (2020)


No fundo, são muito poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos comovem o coração, e menos
ainda as que o comovem muito tempo.
No fundo, são pouquíssimas as coisas
que importam de verdade na vida:
poder amar alguém e que nos amem,
nunca morrer depois dos nossos filhos.

Amalia Bautista, em Conta-mo outra vez. 

 eu achava que queria ser poeta, mas no fundo eu queria ser poema.

Enrique Vila-Matas, em Bartleby & Companhia. 


Cuidamos uns dos outros. 
Somos pássaros que vigiam 
os ninhos. 
Mas depois temos de voar. 

D.M

Imagem: fotografia que integra o livro Solitude of Ravens, de Masahisa Fukase.