Posso estar errado, mas

Ouvi um senhor no café a discutir futebol. Começou a frase de uma forma que me agradou muito: “posso estar errado, mas…” tenho a sensação de que esta expressão só pode caber na boca da boa gente, e todas as ideias deviam começar exactamente assim.

 Posso estar errado, mas.

O erro de Shakespeare

Sobre a cegueira, Shakespeare escreveu: “Looking on darkness which the blind do see”, levando a crer que aquilo que um cego vê é escuridão. 

Borges, que cegou (como o seu pai e a sua avó), contrapôs assim: “One of the colors that the blind-or at least this blind man-do not see is black (…) The world of the blind is not the night that people imagine. (I should say that I am speaking for myself, and for my father and my grandmother, who both died blind-blind, laughing, and brave, as I also hope to die. They inherited many things-blindness, for example-but one does not inherit courage. I know that they were brave.) 

A cegueira de Borges leva-me a acreditar que tem de existir luz dentro da escuridão, se até os cegos a conseguem ver.

Vaidade

Um careca que anda sempre com um pente no bolso.

Stalker: à procura de um propósito

“A man writes because he is tormented, because he doubts. He needs to constantly prove to himself and the others that he’s worth something. And if I know for sure that I’m a genius? Why write then? What the hell for?” 

“But if no one is going to read me in one hundred years, why the hell should I write at all?“

Imaginamos o nosso passado (tentamos dar-lhe sentido) e alteramo-lo. Acrescentamos informação, substituímos e apagamos. O passado é exactamente isso: uma forma de escrever ficção todos os dias, e está cheio de coisas que não fizemos. A distância dá-lhe esse poder: introduz a crença, quase sempre, de que o que foi nos soa melhor do que o momento que estamos a viver agora. A nossa memória é fundamental para que possamos sentir que existimos, que temos uma função aqui e que os anos vão passando (a presença de uma continuidade dá-nos segurança). 

Stalker, um filme de 1979, não nos deixa sozinhos, algumas das inquietações mais profundas ainda se mantêm: a ideia de que a felicidade é o nosso objetivo final, a ideia de que essa procura exige luta e a ideia de que a devemos procurar com toda a nossa carne. Neste filme de Tarkovski, a “Zona” (um lugar restrito à população por ter sido alvo, alegadamente, de um meteorito), não é mais do que a representação de que só poderemos ser felizes se sairmos daqui. Este aqui é onde estamos agora. Talvez seja uma mentira que faz todo o sentido: quando crescemos, obtemos a capacidade de criar uma ilusão, de acreditar nela e de a perpetuar pelo tempo. Como dizia Dostoyevsky, em Crime e Castigo, “vive mais feliz aquele que melhor se sabe iludir a si próprio”. Num dos diálogos discute-se a relação entre o egoísmo e a arte. Neste sentido, há um encontro entre o autor e a obra. Gosto de pensar que só um deles morrerá. 

Pensemos nos quadros de Van Gogh, que carregam uma beleza absoluta. Podemos vê-los, pendurá-los na parede do quarto, espreitá-los num museu qualquer, e isto acontece porque a arte é (e deve ser) mais capaz do que todo o egoísmo humano. Por vezes, até parece existir uma conspiração do universo para que seja mesmo assim. Kafka desejava destruir os seus textos. No entanto, hoje, eles estão à distância de uma biblioteca ou de uma livraria. Não se consegue, de forma exímia e concreta, definir a arte. É impossível. Eu penso que esta é uma das razões: a arte sabe sempre como fugir ao egoísmo de quem a criou.