Uma relação amorosa com o medo. Vivo há mais anos com o medo do que com qualquer outra coisa, objecto, animal, pessoa. Conheço o meu medo como ninguém. Sei de que forma ele gosta de se sentar ao meu lado; sei quando está irritado e exige a minha presença imediata. Sei quando me vira as costas e parece ignorar-me. Sei quando me convida para sair, sei quando me exige que saia dali. Sei como de manhã, depois de abrir os olhos, ele me diz sempre as mesmas palavras, naqueles momentos em que é menos piedoso e não se inibe de me maltratar: Queres mesmo levantar-te? Queres mesmo levantar-te?
Não entendo porque ele me diz isso, porquê esta violência. Mas é a frase que mais me destrói, diariamente, a frase contra a qual vivo, a frase que tenho de superar para poder existir simplesmente, para simplesmente lavar os olhos e a cara.
Queres mesmo levantar-te? Queres mesmo levantar-te?
Quero, quero, quero!, vejo-me por vezes obrigado a gritar. Mas penso — depois de acalmar, de voltar às batidas normais dos órgãos, de me instalar de novo na respiração base — que talvez isto me faça bem. Que talvez o meu medo seja mesmo o meu único companheiro, e talvez ele faça isto para me obrigar a gritar — a começar o dia a gritar.
Talvez ele saiba que, se não me fizesse essa pergunta, eu talvez um dia não me levantasse.
Gonçalo M. Tavares, em Na América, disse Jonathan.