Elena

Era fim de outono. O sol abandonava, lentamente, Lisboa. Elena corria na avenida principal. Foi quando a vi pela primeira vez. Sim, lembro-me bem. Elena estava a correr. Escutei o som do comboio. A estação é onde os comboios vivem, mãe, é onde fazem e desfazem a cama, explicava uma criança. Percebi onde me encontrava: a estação. Elena olhava para o relógio e suspirava. Parecia ter- se atrasado. Sentou-se num banco, junto a mim. Cheirava a rosmaninho. Sim, lembro-me bem daquele cheiro. Nascia-lhe do pescoço. Pensei que, talvez, noutro lugar e ao mesmo tempo, uma flor pudesse estar a nascer da terra. Tinha lido uma teoria fascinante de um escritor russo. Não me recordo do nome do autor, mas sei que dizia: quando um momento nos acelera o coração, imediatamente outro se sucede. E esse, que é novo, acontece tão rapidamente que tem a capacidade de apresentar a mesma medida de tempo. Do cheiro do pescoço de Elena, nascia uma flor. É um pensamento maravilhoso, imaginei.

O comboio chegou finalmente. Elena entrou primeiro e olhou à sua volta. Lembro-me bem: observou o espaço como se procurasse o Universo dentro da carruagem. Um homem de fato fumava. O fumo subia-lhe à frente do nariz e desaparecia num sopro do vento. A noite instalava-se no céu. Lá fora, o frio, os carros, as luzes, os prédios, os sons. A escuridão preenchia o semblante de Elena. O seu rosto era desenhado, intermitentemente, pelas sombras da paisagem. Junto à janela, um casal apontava na minha direcção e na de Elena. Sorriam. Saímos na estação seguinte. Porque teria tido ela tanta pressa? Ficava mais calma, o seu passo era o de quem pensava em andamento: lento, procurando ver-se por dentro, escavando a mente à procura de si mesma. E era tão bonita assim. O casaco castanho realçava-lhe o corpo inseguro e o tronco inclinava-se ligeiramente para a frente. 

Perdoar-me-á o leitor por, naquele instante, não ter tido a capacidade de chamar o seu nome, de lhe segredar alguma coisa ao ouvido. Queria e não podia. Elena entrou em casa. Vivia num apartamento simples, muito pequeno. Estendeu o casaco na cadeira, pousou a mala em cima da cama e sentou-se. Olhou na minha direcção como se me pudesse ver. Tremi. Elena suspirou novamente. Depois, levantou-se e foi à cozinha. Observei o quarto dela. As paredes estavam desgastadas pelo tempo e a cor da tinta era irregular. Havia um quadro com uma pintura de um bosque colocado ali para disfarçar um buraco, mas era perceptível. No chão, junto ao roupeiro, consegui distinguir livros de Dostoievksi, Gogol, Borges e Fernando Pessoa. Havia outros. No entanto, os nomes eram imperceptíveis. Elena voltou. Trazia um copo de vinho e um chocolate. Assim, não estava sozinha. Inclinou-se e pegou num dos livros. Leu, bebeu, leu, bocejou, comeu, bocejou, leu, chorou, bocejou e adormeceu. 

Vê-la dormir foi desejar que a manhã nunca chegasse. Vê-la dormir significou que nasceram milhares de flores novas em todo o planeta. Quando o casaco secou, desapareci. Elena, há a possibilidade de nunca mais te encontrar, por isso vou dizer-te tudo aquilo que eu gostava que estivesses a pensar agora: “É isto a solidão, sinto-a na minha pele. A solidão é adorarmos a poesia da chuva, abrirmos uma janela e não encontrarmos mais do que o calor do sol. A dor é não termos a coragem necessária para abrir um livro. Quando o Universo está seco, os discos não tocam. É essa a razão de precisar de ti aqui: tentar descobrir-me nos espaços vazios da chuva.” 

A nossa existência depende de tudo aquilo que podemos imaginar. Às vezes, é tudo o que temos.