Se o mar secasse

Gabriel acordava todas as manhãs com a mesma interrogação, como se uma voz leve lhe lembrasse ao ouvido: e se o mar secasse? Essa ideia tinha-se colado a ele durante uma aula de literatura, quando folheava um livro sobre teatro. Gabriel esquecera-se do nome do autor, mas a pergunta permaneceu. Pouco antes da chegada do sol, colocava os pés dentro dos chinelos, deitava o café a ferver para dentro da chávena, barrava a pasta de chouriço no miolo do pão, e, de repente, infalivelmente: e se o mar secasse? 

O avô de Gabriel era pescador. Preparava as canas, enchia o balde com uma mistura de pão e sardinha (era a armadilha para o peixe) e amarrava todo o material de pesca à caixa da carrinha. Gabriel não se limitava a formular a pergunta. Procurava dar-lhe resposta e sentido: se o mar secasse, os peixes viveriam dentro da chuva. Se o mar secasse, os Homens venderiam muitos aquários. Se o mar secasse, o almoço de hoje não seria mais que pão e leite. Se o mar secasse, as únicas estrelas que nos apaixonariam seriam as do céu. 

Houve uma manhã em que alguém bateu três vezes à porta. Só podia ser o avô de Gabriel. Significava que estava pronto para mais um dia de pesca e que tinha gosto em levar o neto. Gabriel atrapalhava mais do que ajudava, sabia-o, mas o avô não lhe dizia. Gabriel não tinha a coragem de agarrar no peixe quando este estava fora de água. Antes de ir para o balde, dançava e saltava nas suas mãos, abria e fechava a boca, como se procurasse ainda o isco que o agarrou. Ali, sentado na rocha, Gabriel observava um arco-íris a desenhar-se no horizonte, um barco que furava o vento e as ondas ao mesmo tempo. E se o mar secasse, avô? Estaríamos aqui, da mesma forma? Não, nunca da mesma forma. Não sentiríamos este cheiro a sal e a areia negra, aquele caranguejo não existiria, as tuas mãos não seriam tão duras. 

Se o mar secasse, seríamos pó, vento e lixo. Gabriel lançou a cana ao mar e pescou um polvo muito pequeno. Depois, entusiasmado, puxou-o para terra. Nem se pode chamar polvo a essa miniatura, parece uma aranha, disse-lhe o avô, sorrindo. Gabriel encontrou outra resposta para a pergunta e se o mar secasse?: se o mar secasse, avô, então eu acho que não teríamos memória.