a minha vida"
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
e uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro
outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu, não, nunca choraste
por amores que se perdem
os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
Que derruba primeiro no nosso corpo
Tudo o que seremos depois
"pago-te um café se me contares
o teu amor"
É a história que nos domina, e não nós a ela. Dia e noite viajamos dentro dela e fazemos tudo o que tem de ser feito; barbeamo-nos, comemos, amamos, lemos livros, exercemos uma profissão, como se as nossas quatro paredes estivessem imóveis, quando o inquietante de toda essa história é que as paredes viajam sem que nós demos por isso, e projectam os seus carris como longos fios, curvos e tacteantes, e nós não sabemos para onde. E ainda por cima, o que nós gostaríamos era de pertencer também às forças que determinam o andamento do comboio do tempo. É um papel muito pouco claro, e quando, após uma pausa mais longa, olhamos lá para fora, acontece que a paisagem se transformou: o que passa a correr, passa porque não pode deixar de o fazer.
Robert Musil, em O homem sem qualidades.
Nenhuma mudança positiva pode ocorrer enquanto se agarrar ao pensamento de que a razão pela qual não vive como quer é exterior a si mesmo. (...) Você e só você é responsável pelo ponto em que se encontra a sua vida, pelas traves-mestras que a sustentam, dependendo inteiramente de si mudar aquilo que não o faz feliz. (...) Crie um destino que seja capaz de amar.
Irvin D. Yalom, em De olhos fixos no Sol.
Para a palavra fazer, gosto da ideia de construção
E o que dela existe nos movimentos normais.
Agrada-me a palavra engenharia e o que ela
Representa: não saias de um sítio sem deixares algo
Atrás de ti. Dirijo-me apenas às coisas que me excitam
Positivamente e me levam a fazer outras coisas, dirijo-me
Às pessoas que gosto, nunca às que não gosto;
Sempre me pareceu insensato que na vida se pare,
Nem que por um momento, de admirar, há
Sempre actos e coisas que nos ajudam
neste cálculo infernal da distância entre o dia de hoje
e a nossa morte. E qualquer pessoa dar um passo que seja
em direcção ao que não aprecia, para insultar, ou derrubar,
parece-me brutal perda de tempo, uma falha grave
no órgão de admirar o mundo
(deves combater uma ou duas vezes na vida,
se combateres duzentas vezes
é porque os combates são fracos).
Não sei pois como viver. O que li e vi
Serve-me apenas para ser mais lúcido, não
Para ser melhor pessoa. Adquiri esta regra (ou nasci com ela):
— e é talvez uma moral —
mover-me apenas em direcção ao que gosto.
Se o prédio alto, escuro, feio
me impede de ver o sol, não fico a insultá-lo, não
moverei um dedo para o deitar abaixo:
contorno sim os edifícios necessários
até chegar ao espaço de onde possa receber aquilo que
quero.
Gonçalo M. Tavares, no poema Energia e Ética.
Uma noite, quantas madrugadas tem? Andas a contar? Eu não. Lhes apanho só, conforme lhes vejo e sinto. Atrevo: uma só noite tem bué de madrugadas; cada uma dessas madrugadas tem bué de brilhos. Confesso-me aqui, nos lábios da sinceridade: gosto muito disso — acreditar no impossível das palavras, lhes maltratar no português delas, ser livre na boca das estórias e me deixar tar aqui, sentado dentro de mim, abismático. E sonhar!, sonhar até chegar nesse quintal onde dentro de mim nascem barulhos e não só: nascem brilhos. Vejo búzios que riem à toa e aprendo: posso descansar as vozes como se fossem conchas de pousar na areia depois de lhes apanhar numa noite de lua brilhante. Depois do barulho das vozes os búzios se calam e eu, no respeito, me calo também.
Ondjaki, em Quantas madrugadas tem a noite.
O que procuro para a vida não é uma desculpa, mas exactamente o seu contrário: é o perdão que busco. Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem reflectida do desespero. De facto, assim que o desespero me diz – «perde a esperança, o dia não passa de um momento de trevas entre duas noites», há uma falsa voz que me grita – «tem confiança, a noite não é mais que um momento de trevas entre dois dias».
A humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine. E mesmo aquele que deseje tornar-se mau — agir como se todos os actos fossem defensáveis — deve ter ao menos a bondade de notar quando o consegue.
Ninguém pode enumerar todos os casos em que o consolo é uma necessidade. É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.
Stig Dagerman, em A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.
Raul Brandão, em Húmus.
Duas coisas
Só há duas coisas no mundo pelas quais vale a pena viver, o amor e a arte.
William Somerset Maugham, em Servidão Humana.
Para amar uma coisa
Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci, de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.
Bernardo Soares, em Livro do Desassossego.
Diálogo inventado
A força do olhar
“Nós hoje temos uma vida em que estamos diante de rectângulos, não de pessoas. Eu gosto muito de uma história, precisamente sobre a importância da presença. É uma história do escritor espanhol Ramón Gomez de la Serna, em que ele conta que dois comboios vêm em sentido oposto e param ao mesmo tempo na estação. Ele diz que há um homem à janela de um comboio e há uma mulher à janela do outro. Eles trocam entre si um olhar tão forte que, quando os dois comboios arrancam, arrancam na mesma direcção.”
Gonçalo M. Tavares à conversa com Pedro Abrunhosa.
Lembrete
Mas este é o caminho: eliminar o que não nos faz avançar.
Gonçalo M. Tavares, em Atlas do Corpo e da Imaginação.
22 anos depois
Tão certo como “apaixonar-se sempre pelos homens errados”. Ulay, artista alemão batizado Frank Uwe Laysiepen, falecido em março deste ano, surge como exemplo indiscutível. Marina conheceu o amor da sua vida em Amsterdão, em 1975, já depois de ter sido casada com um membro do colectivo Group 70, a associação artística onde começou a carreira, em Belgrado. “Tinha acabado de fugir de casa, aos 29 anos, e a minha mãe de ir à polícia dizer que eu tinha desaparecido, ao que lhe responderam, ‘camarada Abramovic, estava mais do que na hora, ela devia ter mais que fazer’. A liberdade e cumplicidade que Ulay lhe propunha atirou-a para os tempos mais felizes da sua vida. Doze anos pela estrada fora, os dois, numa carrinha Citroen e com um cão por companhia. Quase amor e uma cabana, não fora a performance a dar-lhes uma existência mundana, de palco em palco, de experiência em experiência. Até à apoteose final: um casamento a meio da Muralha da China, depois de cada um ter percorrido 2 mil quilómetros a pé em três meses de caminhada. Ela a partir do Mar Bohai, ele a começar no deserto de Gobi. O percurso, mais uma performance de êxito, “The Lovers” de seu nome, chegou a acontecer em 1988, mas em vez da boda, o mundo assistiu à separação dos dois. Seguiram-se 22 longos anos sem se verem e sem se falarem. Até que, há dez anos, Ulay se apresentou na inauguração da mais bem sucedida performance de Abramovic, “The Artist is Present”, no MoMA, em Nova Iorque, e se sentou à frente dela, dando lugar a um dos momentos mais comoventes da história da arte performativa.
Texto de Alexandra Carita, no Expresso.
Sonhei tanto contigo,
caminhei tanto contigo, falei tanto,
amei tanto a tua sombra
que já não me resta nada de ti.
Só me resta ser uma sombra entre as sombras,
ser cem vezes mais sombra que a sombra,
ser a sombra que virá e voltará a vir
na tua vida ensolarada.
Robert Desnos, em “Qual é a Minha ou a Tua Língua? - Cem poemas de amor de outras línguas”, traduzido por Jorge Sousa Braga.
A explicação da ausência
Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer - fosse abertura -
E a saudade é tudo ser igual.
Daniel Faria, no livro Poesia.
E quando desaparecer, gostava de levar tudo comigo no mar. É que eu sou da água, todos sabem disso.
Não me tirem tudo de mim. Se a morte anda por aqui, nada lhe daria mais prazer.
Deixem-me qualquer coisa de mim.
Preciso das minhas mãos inteiras, lavadas ou sujas, não importa. Preciso delas. Para acariciar as crianças, o papel, os amigos, o amor quando ele deixa. Para me acariciar a mim, para me abraçar à falta de abraços. Sim, eu abraço-me. Não só quando choro, mas quando preciso de paz.
Deixem-me de mim, alguma coisa para mim.
Patrícia Baltazar, no livro A RH - (SANGUIS LANGUENS).
Aprender a largar
Burroughs citado por Gonçalo M. Tavares, em Atlas do Corpo e da Imaginação.
Nascer todas as manhãs
Apesar da idade, não me acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs.
Miguel Torga, em Diário (1982).
Definição
vida (rio sem nascente que corre infindavelmente para mar nenhum).
William Somerset, em Servidão Humana.
Mendiga voz
E ainda me atrevo a amar
o som da luz a uma hora morta,
a cor do tempo num muro abandonado.
No meu olhar já perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.
Alejandra Pizarnick, em Antologia Poética.
Um prego
Cravava cuidadosamente um prego na parede, quando pressentiu que, como água dum cano que se rompesse, o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância na aparência cristalina mas em cujo seio as formas do presente se diluiriam todas, como se, com os seus contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol se deslocasse, por pouco que fosse, do presente para o futuro, se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si uma cicatriz imensa.
“Imperfeito este mundo
E contudo
Recoberto de flores”
Issa Kobayashi, em Primeira Neve.
Sempre que vivi um desgosto, a minha mãe disse-me a mesma coisa: filho, as rosas também têm espinhos. Eu também os tenho, mãe, e há dias em que me assemelho a um ouriço. Mas a questão central no amor não tem a ver com os espinhos das flores, antes com o sangue que conseguimos derramar sem perder os sentidos, antes com a nossa capacidade de florescer.
Pois há até flores que crescem nos lugares impossíveis. Presenciaste alguma vez algo assim? Uma magnólia a surgir do cimento?, uma margarida a espreitar pela fenda do alcatrão?, uma papoila a arrastar-se na pedra?
A Natureza ensina: apesar da adversidade, às vezes a flor desenvolve. Não estavam reunidas as condições, mas ela quis. Por isso, minha mãe, se um dia eu tiver encontrado flor assim, diz-me que o que encontrei foi, afinal, o amor.
Os livros
É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo “eu” entre nós e nós?
A arte é uma ferida feita de luz, dizia Georges Braque. Precisamos dessa luz: não só quem escreve ou pinta ou compõe música, mas também os que leem e veem quadros e ouvem um concerto. Precisamos todos dessa beleza para que a vida nos seja suportável. Fernando Pessoa expressou-o muito bem: “a literatura, como a arte em geral, é a demonstração de que a vida não basta.” Não basta, não. Por isso redijo este livro. Por isso estás a lê-lo.
Rosa Montero, em A ridícula ideia de não voltar a ver-te.
Partida
De súbito extinguiu-se qualquer coisa,
soltou-se qualquer peça de uma máquina incompreensível
de que dependia, afinal, a minha vida;
tornou-se tudo demasiadamente literal,
até eu estar ali, sem compreender;
e até eu não compreender parecia
algo inteiramente incompreensível;
o mundo, que via pela primeira vez,
via-o através de uns olhos que não me pertenciam,
que não pertenciam, porque eu próprio era
um acontecimento incompreensível acontecendo,
algo que me acontecia não sabia a quem;
o comboio afastava-se levando-te
para fora de mim como alguém sonhando,
e eu e tudo o que de mim sabia desaparecera
e ficara um sítio vazio
onde as últimas horas da tarde
como aves extenuadas pousavam.
Manuel António Pina, em Atropelamento e fuga.