Epitáfio de Domingo

Se eu desaparecer hoje

E falo mesmo do meu corpo aqui tão sentado

a escrever desde a ponta da língua à légua mais distante 

da minha vida,

diz que compreendi.

Diz que sei que nada está onde é certo estar

Que o amor súbito é a escada para o entendimento

Diz que fui ar azul sobre campos de secura

Estrada recta ao infinito, entre oliveiras

um acidente ao longe

Que provei toda a sede quando engoli os homens

Que queimei alegremente no ácido das palavras

Que tombei em ricochete para que me vissem

E que, quando me viram, me ergui animal

Diz que me viste nua, sempre

Que corri por hospícios de olhos fechados

e a boca às avessas

Que vivi mais ao alto do que em mundo plano

e fui honesta na minha rente loucura

Diz que nunca esqueci a subida a um plátano

Que ninguém viveu no meu lugar, nem eu, no de ninguém

Que fui o halo frio que preenchi com esta pena

Pela minha ausência

E que tudo o que disse foi com silêncio

Diz que sei, sobretudo, que ardemos juntos como ventosas,

Que o teu corpo me serviu de andar às pernas asmáticas

Que te agradeço ter-te oferecido lírios

Que me reduziste o nojo da espécie

Diz que eu, fui eu

Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos:

- quanto em mim fui que não vivi

quanto em ti é que fui eu?

Mas não te preocupes, não desapareço hoje

Quando me conheceste já eu não existia

e tu sabes que essas saudades que vais tendo

são as minhas.

Cláudia R. Sampaio, no livro Outro nome para a solidão.