Noite difícil. Pela primeira vez, desde há dez anos, dormia em sua casa. Sozinho. E num sobressalto, descobria a falta da segurança citadina, essa muralha de ferro e de cimento, contra a qual embatiam as vozes do alarme, da noite. Nas noites da cidade o dia não morre de todo – descobria-o de novo agora. Apagou o candeeiro, tentou descansar. Não havia vento, mas envolvia-o de toda a parte esse fundo rumor dos espaços, eco do silêncio, dos mortos. Mais alto, raiado aos confins da escuridão, erguia-se em leque o fragor da ribeira. Bruscamente estremeceu: um turbilhão de ratos rolou em cima, no tecto. Amanhã, pensou, uma boa dose de estricnina. Depois, de novo o silêncio. Suspensa dos rumores esparsos, da aragem surda do Inverno e da noite, toda a casa lhe parecia flutuar, esvaziada do seu peso, as coisas reassumirem a sua vida intrínseca com lume vivo nos olhos, falando sons audíveis, respirando-lhe sobre a boca. Abria os olhos ferozes, dispersava esses animais de pesadelo. Respirou fundo, sossegou. E pouco a pouco foi-o inundando uma paz estranha e mais funda que o seu cansaço e terror. Vinha da própria terra, do frémito da noite abandonada, como se reconhecidas enfim suas irmãs de sangue. Sim, eu sei. Imagem do meu sossego, obrigado. Nada mais além deste sobressalto vão. Colunas de sombra, fachos erguidos, velando a face morta da terra. Quem me visita? Memória submersa de um olhar grave, de uns olhos vidrados de aflição, de um corpo quente dançando por entre uma flutuação de nuvens... Um suave torpor dissolvia-o numa espécie de resignação. Adormeceu.
Vergílio Ferreira, em Cântico Final.