55.
Ainda estamos cá.

Temporizador

Ainda não estou a dormir, pai.
Ouço os latidos dos cães lá fora.
São cães mortos e já enterrados
nos buracos que me guardam o sono.
A lua é uma lâmpada
que incendeia o cortinado
e a rua é paisagem de tinta escura.

Ainda não estou a dormir, pai.
Há o Inverno que se infiltra no corpo,
e que vem de fora para dentro,
nunca o contrário.
Os grilos assobiam para celebrar a noite,
mas são grilos mortos,
e os ratos que rebolam no sótão 
são ratos mortos também.

Ainda não estou a dormir, pai.
A televisão expulsa uma claridade 
que me cega,
memória que atiro contra mim.
Colocas o temporizador?
E se ficasses mais um pouco?,
pois é ainda tão longa a vida
e é ainda tão cedo para desligar
o mundo.

Vais-te já deitar?
Então, boa noite, 
mas deixa que te faça uma pergunta:
qual é a função deste medo?
e outra:
para que serve a escuridão?
Sim, hoje estás muito cansado,
mas promete que amanhã
me explicarás tudo. 

d.m.