Histórias amorosas antigas. A história de Orfeu e Eurídice.
Orfeu, filho de Apolo e da musa Calíope, portador de uma lira que encanta todos os vivos, animais e humanos, todas as baixas e altas montanhas, pequenos e longos rios e mares, frutuosas ou secas árvores e plantas. Tudo é seduzido pelo som de Orfeu.
Há depois muitas variantes desta história, mas aqui vai uma possível síntese rápida: Orfeu totalmente apaixonado por Eurídice, esta morre, mordida por uma cobra.
Orfeu e Eurídice; Adão e Eva; e muitos outros casais míticos onde a cobra intervém com muitas maldades e bem más. Uma cobra quase sempre na última sala dos medos mais humanos.
Mas deixemos os muitos detalhes desta morte. A mitologia tem desvios infinitos.
O importante aqui: Orfeu vai buscá-la ao mundo dos mortos; é autorizado a isso. A sua música convence todos. O primeiro dos músicos: Orfeu não argumenta, encanta.
Mas o seu grande amor por Eurídice é o motivo principal desta excepção radical na mitologia: poder resgatar um morto e levá-lo de novo para o mundo dos vivos.
As ressurreições raríssimas, mesmo na infinita imaginação dos gregos.
Como se fosse algo tão sagrado - um morto que ressuscita - que mesmo a imaginação tivesse algum pudor em relatar esse milagre.
Uma condição foi posta: Orfeu, quando estiver no mundo dos mortos, não poderá olhar para trás.
Se o fizer, Eurídice ficará morta, continuará morta (continuar morto, expressão estranha, quase provocatória).
Orfeu vai à frente, Eurídice atrás, os dois por um corredor escuro que sai do mundo dos mortos para o mundo dos vivos.
Nada se vê, é preciso caminhar, ter confiança; fé, portanto.
Orfeu talvez tenha deixado de ouvir, primeiro os passos e depois a respiração de Eurídice; fica ansioso. Estará ela ainda atrás de mim, o que terá acontecido?
O silêncio atrás de Orfeu torna-se insuportável. Ela segue-me ou não?
Orfeu vira-se; erro definitivo: Eurídice estava lá, atrás dele, seguia-o, silenciosa. Mas agora é tarde demais.
Orfeu terá perdido a fé, por momentos, talvez tenha sido isso. Não olhar para trás, ter fé. Mas erro que envolve a morte é erro definitivo.
Por causa disso, Eurídice não poderá sair do reino dos mortos. Era o compromisso, Orfeu não poderia olhar para trás.
Em muitos mitos e parábolas, esta questão do estranho pecado (talvez o oitavo) de olhar para trás.
Viver sem olhar por cima do ombro. Viver sem consciência da nuca.
(...)
Orfeu sai de novo para a luz viva; está vivo, sim, mas sozinho; está, pois, desfeito. A sua vida em pedaços (e em breve também o seu corpo).
Passam os dias e muitas mulheres o desejam, ele ignora-as, só pensa em Eurídice. Jurou nunca mais amar ninguém.
As mulheres rejeitadas ficam loucas, possessas.
Em bando e bêbadas vingam-se, desfazem o corpo de Orfeu, o corpo que as havia ignorado.
(...)
"Mesmo quando a cabeça ia, arrancada, rolando na corrente de Hebro Eagro, se lhe ouvia a gritar gelada língua 'Eurídice!', teu nome, e repetia sua expirante boca um eco: 'Eurídice'."
Pois é isto, uma das mais potentes manifestações amorosas clássicas.
Gonçalo M. Tavares, no Expresso.